domingo, 20 de março de 2011

Texto de Ítala Clay - em destaque refere-se negativamente à APRODAM


Texto de Itála Clay retirado de Mapas e Contextos – Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. 

Inspirada pelas conversas com o grupo de pesquisadores do programa Rumos Itaú Cultural Dança, resolvi abandonar o estilo de texto adotado nas versões anteriores e escrever um ensaio, em vez de um relato que quantifica e ordena um pacote de informações. Essa escolha já designa minha proposta de diálogo com os leitores em potencial, ou seja, apresento algumas questões provenientes da captação de dados e busco sustentá-las por meio do auxílio de alguns autores na construção de uma abordagem crítica e reflexiva.
 Podemos começar com uma caracterização geral da produção dos espetáculos. As representações cênicas referentes à dança contemporânea nas cidades de Belém e Manaus não são unânimes nem uniformes em suas proposições estéticas e políticas. O mapeamento elaborado em 2009, abrangendo um recorte temporal de três anos, apresenta um quadro de diferentes caminhos que foram percorridos, tais como a apresentação de temáticas amazônicas, a relação com obras literárias e outros gêneros de enunciação, a expressão de universos psicológicos, a crítica social etc. a apresentação das peculiaridades amazônicas remete a uma possível leitura de resíduos históricos e ideológicos referentes à busca de uma identidade cultural fundamentada em certos arcaísmos conceituais do nacional e do popular. E as indagações de alguns artistas diante do mundo atual, pensadas em termos de construção de subjetividades individuais e coletivas com autonomia de pensamento, levam a exercitar a potencialização simbólica desses posicionamentos artísticos e políticos frente às sociedades nas quais se constituem. Proponho, nesse sentido, o exercício de alguns desdobramentos.
 Referente às discussões sobre identidade cultural, sabe-se que elas têm sido constantes na América Latina desde o século XIX. No Brasil, de modo mais específico, historicamente há toda uma ensaística, na qual se apresentam diversas posições acerca da construção de uma identidade nacional, que percorrem os pensamentos desde a miscigenação de negros e índios com obranco (para melhoramento racial), a posterior mescla de práticas culturais e as alterações operadas na ideia de identidade brasileira por meio do surgimento da indústria cultural no Brasil nos anos 1980 (ORTIZ, 2006; 2001).
É possível retomar essas questões para pensar a prática cênica na dança no Brasil, a partir do que Paulo Paixão denomina “poética da brasilidade”: uma operação de articular no corpo o pensamento o pensamento do nacional, cuja maioria das questões se orienta em traduzir e ser traduzida como um jeito de ser partícula aos brasileiros, e que se manifesta desde o início da profissionalização da atividade artística da dança no Brasil, estendendo-se até os dias atuais. Evidencia-se nesse tipo de abordagem a utilização do recurso da estilização, um procedimento que vai e vem no tempo. Utilizado pelo romantismo europeu no século XIX, foi incorporado, na década de 1950, à prática dos estrangeiros que foram pioneiros da dança no Brasil e absorvido na prática de professores e artistas locais, como no caso Eros Volúsia, que propunha uma estilização do popular, fundamentada em aporte etnográfico, com referências do balé, ainda que minimizadas (PAIXÃO, 2009: 58-60).

Essa poética da brasilidade se apresenta como uma chave importante para o entendimento de determinada tendência da dança na Região Norte, na medida em que é possível observar que uma parte considerável da produção está comprometida com as temáticas amazônicas, e principalmente com uma forma específica de abordagem cujo objetivo é apresentar a identidade cultural com base em elementos autenticamente regionais, com a preocupação de alguns artistas em representar os contos e lendas, em ratificar os qualificativos de exuberância das matas e dos rios, em apresentar as cores e os trejeitos da figura do caboclo, em pautar as culturas indígenas e os discursos ecológicos em suas obras.
 Em suas versões mais recentes, essa poética se apresenta não somente com a incorporação de adereço e gestuais folclóricos, tendo o balé clássico como base coreográfica, mas com o ajuntamento-acoplamento de diversas técnicas de preparação corporal (dança moderna, improvisação etc.) e recursos cênicos mais discretos (por exemplo, grafismos em vez de penas) que buscam legitimar no designativo cronológico de “contemporâneo”. Em Manaus, mais especificamente em 1998, é possível encontrar um método semelhante na versão da Sagração da Primavera, coreografada pelo búlgaro Ivo Karagueorguiev e, 11 anos depois, em 2009, encontra-se atualizada na coreografia Oré, do amazonense André Duarte, ambas encenadas pelo Corpo de Dança do Amazonas (CDA).
 Esse parece ter sido o modo de operação corrente em boa parte dos espetáculos de dança, realizados com o intuito de ser representativos da cultura local e do homem amazônico, reduzindo-os à ilustração dos ambientes de fauna e flora, e à inserção de gestualidades estereotipadas copiando as faceirices caboclas ou a dança indígena em círculos. Um discurso perigoso em termos culturais para as artes, no sentido de que promove a ilusão de colocar no palco uma identidade amazônica homogênea e universal, criando figuras de tal generalidade e vagueza que acabam se esvaindo e se esvaziando em esquematismos ornamentais.
 Em outras áreas de conhecimento, esse modelo de imagem da região amazônica já vem sendo questionado há muito tempo, e retransmiti-lo é incorrer em anacronismo e na negação das cidades-florestas, em que se tem o maior número de etnias e línguas indígenas com uma visão completamente diferenciada dos modelos hegemônicos de pensar o mundo, em convivência com diversos imigrantes, no exercício diário de mestiçagens culturais. Nesse sentido, é interessante citar a experiência do antropólogo Stephen Nugent (Universidade de Londres) e do professor Renato Athias (Universidade Federal de Pernambuco),em 2000, na realização de um etnodocumentário sobre as comunidades judaicas na Região do Baixo Amazonas:
 Ao ser exibido a europeus em um ambiente antropológico/acadêmico, no entanto, ficou evidente que o filme foi percebido como uma obra sobre judeus, e não sobre a Amazônia. De fato, era um filme sobre judeus, mas judeus da e na Amazônia (com exceção de duas pessoas entre as dúzias, todas foram criadas na região, sendo de terceira ou quarta geração). Para a platéia, isso contrariou as expectativas, pois todos sabem que a Amazônia é uma terra de índios, colonizadores predatórios, desmatadores, fazendas de pecuária e degradação ambiental. O fato de a Amazônia incluir judeus, japoneses, libaneses, holandeses, franceses, ingleses, ucranianos, etc. surpreendeu de maneira incômoda, destruindo certezas sobre os clichês que muitos prezavam (ADAMS, 2006: 34)
 Não se trata de um imperativo supressor de temas regionais. Inegavelmente, a representação de um conteúdo local constitui-se em algo significativo, principalmente quando é possível observar um processo de reconhecimento e revalorização simbólica dos elementos da vida cotidiana. No entanto, se a exposição de assuntos locais, neste corpo que dança, não consegue promover questionamentos e provocar deslocamentos de ideias, em tal exposição ele se comporta apenas como um veículo replicador de pensamentos hegemônicos, distante do que se caracteriza epistemologicamente como um corpomídia. Sobre esse específico fazer-dizer, no qual se reduz a comunicação apenas ao processo de transmissão, podemos recorrer às palavras de Jussara setenta (2008: 48):
            [...]No corpo que age sem interessar-se em inventar, é como se ele se entendesse como uma folha em branco onde fosse possível rabiscar e exibir contornos e formas. São processadas falas onde o dizer enuncia algo que, mesmo quando é inédito, não produz modos de dizer também inéditos, mas organizamateriais já existentes de modo específico ao seu objetivo. É um dizer que não se inventa. Expõe-se um fazer-dizer que tende a apresentar movimentos produzidos pelo treino-modelo, pelo uso dos materiais da aprendizagem das técnicas de dança, e é isso que fica exposto em primeiro plano na representação. Parece que há uma fronteira clara entre o fazer e o dizer. Porque o dizer está pronto antes do fazer.
 Entretanto conforme citado no início do texto, não há uniformidade de manifestações e é possível encontrarmos pensamentos-procedimentos que levam alguns coreógrafos a buscaroutras leituras da região, bem como outros interesses em seu fazer artístico. Em Belém, pode-se tomar como exemplo o trabalho da Companhia de Investigação Cênica, criada por Danilo Bracchi em 2007, que se propõe a transitar por diferentes linguagens artísticas (dança, teatro, música e performance) e tem buscado uma preparação técnica conforme a solicitação estética do espetáculo em produção. Em Manaus, encontra-se o Pesquisa Cênica Corporal Uma, criado por Francisco Rider em 2006, cujas referências corporais têm base em abordagens somáticas e a proposta investigativa percorre a manipulação de objetos e a interação provocativa com o espectador. Nos espetáculos desses grupos, visualizam-se formulações que se organizam em rede, tecendo opções de escolha, em corpos que se preparam adaptando-se às necessidades que se apresentam no decorrer do processo de produção da dança, prevalecendo a experimentação do fazer naquele momento e a adaptabilidade corporal para a enunciação da fala (SETENTA,, 2008: 47).
 Encontram-se ainda outros caminhos, aqueles que se constroem na convergência das práticas artísticas e universitárias. É possível verificar as experimentações de docentes e discentes das escolas de ensino superior expandindo suas questões investigativas, no processo de conversão de seus trabalhos de conclusão de curso, dissertação de mestrado e projetos de doutorado em materialidade cênica.
 No Amazonas, o espetáculo Rito de Passagem (2008), de Yara Costa, põe em cena o resultado dos estudos referentes à sua dissertação de mestrado sobre as danças indígenas Baniwa, realizado na Faculdade De Motricidade Humana, em Portugal. Rosa Almeida, egressa do curso de dança da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), é selecionada pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 com a proposta investigativa Parte de Mim, baseada em seu trabalho de conclusão de curso. No Pará, destacam-se as pesquisas de doutorado de Ana Flávia Mendes Waldete Brito, realizadas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Em O Seguinte é Isso...(2007), Waldete Brito propõe a realização de uma obra coreográfica tecida no exato instante em que os intérpretes entram em cena, usando a improvisação e o contato-improvisação. No espetáculo Avesso (2007), Ana Flávia Mendes, utilizando recursos tecnológicos da medicinapara propiciar a visualização da anatomia e da fisiologia humana, busca articular as técnicas de contato-improvisação e bodymindcentering, priorizando no processo de criação o aprimoramento da consciência corporal dos intérpretes-criadores.
 As instituições universitárias possuem ainda um papel relevante no que tange à difusão da dança em outras instâncias/ações comunicativas. Nesse sentido, a retomada da revista Ensaio Geral, publicada pelo Instituto de Ciências da Arte, da Universidade Federal do Pará (UFPA), apresenta-se como fato relevante à propagação de pensamentos sobre dança. Já na Universidade do Estado do Amazonas, a revista eletrônica Aboré tem sido o veículo de difusão tanto dos relatos de experiências de ensino-aprendizagem dos professores quanto dos trabalhos de iniciação científica e conclusão de curso elaborados pelos alunos da Escola Superior de Artes e Turismo.
 Os eventos e intercâmbios interestaduais e internacionais também compõem essas estratégias de difusão, dentro ou fora do ambiente universitário. O projeto Autonomia e Complexidade: Intercâmbio Artístico-Filosófico (2009), realizado na Escola de Teatro e Dança da UFBA, em Belém, congregou artistas brasileiros e de outros países, buscando dar visibilidade ao ensino e à pesquisa, bem como aos espetáculos e à documentação sobre dança contemporânea. Em Manaus, o Laboratório Contemporâneo (2008), realizado no Teatro do Sesc, sob a organização de Ricardo Risuenho, Leilane Saburi, Yara Costa, Francis Baiardi e Francisco Rider, teve como objetivo a realização de um encontro para aprofundamento e desenvolvimento de pesquisa de linguagem própria na área da dança contemporânea, direcionado para os artistas e companhias de dança independentes. Uma iniciativa até então inusitada nas práticas e estéticas dos artistas.
 É óbvio que a filiação universitária não garante nem determina a qualidade ou relevância de produções artísticas. Mas é visível o papel fundamental que exerce no engendramento de um mapa local com diversidades perceptivas. Isso porque existe um compromisso subjacente de assumir uma postura crítica frente à realidade que se impõe e uma possibilidade maior de convivência com outras formas de conhecimento, as quais podem fertilizar os debates, os questionamentos, derrubando preconceitos ou simplesmente na vigília constante do que se produz frente ao perigo de acomodamento. O ambiente universitário torna-se, dessa forma, uma local de irrigação de ideias, por meio da realização de trabalhos teórico-práticos em atitude reflexiva e investigativa. Porém, é necessário lembrar que, mesmo nesse ambiente, diversas posições ideológicas encontram-se em confronto – algumas mais conservadoras, outras mais ousadas – e todas em constante negociação de poder, principalmente nas cidades sob nosso enfoque, visto serem instituições universitárias públicas, nas quais os seus recentes cursos de graduação e especializações disputam espaço e voz nas estruturas hierárquicas federais ou estaduais.
 Em termos de poder público, nos anos de 1980, no Amazonas, era possível encontrar matérias de jornais que denunciavam constantemente o descaso e a negligência de órgãos oficiais para com os artistas da dança. No fim da década seguinte, a Secretaria de Estado da Cultura, sob a mesma direção até os dias atuais (2010), imprime um nível de organização e planejamento até então desconhecidos pela população, com a revitalização e reforma de espaços e prédios públicos pra uso exclusivo de atividades culturais, a criação de corpos estáveis para o Teatro Amazonas, a instituição de um programa de apoio às artes, e um calendário de festivais com forte apelo publicitário, gerando mídia espontânea para a cidade e o estado – fato que provocou o aparecimento de expressões de reconhecimento e apoio às ações do governo por parte de artistas, intelectuais e jornalistas.
 No entanto, proponho refletirmos um pouco acerca desse poder de nucleação, no sentido de que, ao mesmo tempo em que ofereceu um campo maior de trabalho e infraestrutura (condições até então inexistentes), propiciou a centralização e o dirigismo de atividades. Basta exemplificar que, atualmente, os teatros, em sua maioria, pertencem ao governo do estado e, portanto, seguem sua agenda administrativa e burocrática, comraros espaços para o exercício da criatividade. É fato que a Associação dos Profissionais de Dança do Amazonas (APRODAM) tem ladeado as ações da Secretaria de Estado da Cultura, como no caso do 10 Festival Amazonas de Dança. Contudo, da conversa com alguns grupos pesquisados, pode-se deduzir que as ações da entidade têm apresentado pouca força de negociação, mesmo diante das conquistas apontadas no processo de formulação e criação dos conselhos municipal e estadual, pois não se corroborou uma atitude efetiva de tais conselhos, tampouco parecem ter se construído laços de confiança entre os profissionais e seu órgão representativo.
 Em Manaus, os grupos de dança isentos do suporte do estado e também do município sobrevivem do investimento de recursos pessoais, da prática de troca de serviços entre os próprios artistas e da participação em editais nacionais. Buscam resolver parcialmente o histórico problema de espaço para a realização de aulas, montagens, ensaios e apresentações por meio da negociação com instituições como o Sesc e o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, mas se queixam da falta de profissionais para a área de produção.
 Em Belém, vários artistas expuseram seu reconhecimento do trabalho desenvolvido pela Secretaria de Estado da Cultura, por meio do Instituto de Artes do Pará (IAP), que tem Ana Cláudia da Costa na condição de gerente técnica de dança. O IAP, por meio de ações diversas, tem se deslocado tanto na direção da história da dança paraense – como, por exemplo, na exposição fotográfica Trilhas da Dança – quanto no fomento a novos trabalhos artísticos. Nesse sentido, pode-se destacar o projeto de concessão de bolsas para pesquisa, experimentação e criação artística, e o Prêmio Secult de Artes Cênicas para a área da dança, denominado Prêmio Augusto Rodrigues, cujo objetivo é o apoio à criação de projetos de pesquisa e produção de montagem de espetáculos.
 No que tange à representação de classe, a Associação Paraense de Dança (Apad), criada em 1988, apesar de ter obtido várias conquistas, passou por um período de inatividade e só agora retoma o fôlego – fato que, segundo a presidente, Marilene Melo, é corroborado pela atual representatividade na Câmara Setorial de Dança (hoje Colegiado de Dança), do Conselho Municipal de Cultura, e pelas discussões para elaboração dos planos estadual, municipal e nacional de cultura. Verifica-se ainda que, em consonância de esforços, foi criado em 2009 o Movimento de Dança Pará, com o intuito de promover o fortalecimento da categoria de dança com base em um diálogo permanente. Entretanto, a sobrevivência dos grupos em Belém dá-se em condições semelhantes às de Manaus, na aplicação de projetos em editais nacionais, nas buscas criativas de saneamento das deficiências financeiras e na espera de uma revitalização da força políticade suas associações. O que faz lembrar que este é um ano de eleições e a preparação para o exercício da cidadania deve incluir, em um primeiro momento, a reflexão e a crítica para, em seguida, adotar o acompanhamento e a avaliação desses servidores públicos.
Ítala Clay:
Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas. Mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP. Foi coordenadora pedagógica do curso de dança e do projeto Arte na Escola da Universidade Estadual do Amazonas (2001-2007). Atualmente desenvolve tese de doutorado sobre o tema dança e jornalismo impresso em Manaus (1980-2000).






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